sábado, 8 de setembro de 2012

O Exército de Crianças Assassinas.


O "jogo de esconde-esconde" começa durante a noite, quando milhares de pequenas figuras saem de cabanas de sapé e caminham para a cidade de Kitgum no meio da escuridão.
A noite é muito fria para se ficar andando pelas ruas, mas as crianças se aglomeram, umas bem junto das outras, sob a luz das estrelas até o raiar do dia. Lá no mato, invisíveis, estão as outras crianças: as que buscam, armadas com fuzis AK-47, bastões e facas.
Este jogo é realizado todas as noites nas cidades e povoados vizinhos, numa área que se estende por centenas de quilômetros. Se os "escondidos" são encontrados pelos meninos guerreiros do Exército de Resistência do Senhor (LRA - Lord's Resistence Army), experimentam um destes três resultados: ou são mortos no local, ou são obrigados a marchar até o mato e mortos, ou são levados para a floresta e obrigados a tornar-se matadores.
Versão macabra - Parece uma versão macabra de Pied Piper, ou de Lord of the Flies (Senhor das Moscas), mas isso é Uganda no 17.º ano de um conflito que está entrando em sua fase mais sangrenta.
Depois de uma trégua, o LRA voltou a penetrar em Uganda desde o sul do Sudão para repetir uma campanha de rebelião contra o governo e de terror contra seus irmãos da tribo dos acholis.
Neste mês, oito pessoas foram mortas a golpes de picareta, e cem casas com tetos de sapé foram incendiadas na cidade de Alito, segundo o Exército ugandense. Esta foi a mais recente de uma série de incursões que deixaram dezenas de mortos e feridos.
Um dia depois da incursão, representantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas visitaram Kampala para se reunir com o presidente ugandense, Yoweri Museveni, a fim de discutir uma solução para o conflito.
Em Kitgum, poucas pessoas esperam que haja um grande avanço. Simon Addison, do programa humanitário da Oxfam no Norte de Uganda, afirma que mais de 800 mil pessoas foram deslocadas de seus lares, mudando-se em sua maioria para acampamentos sem alimentos e abrigos adequados. As clínicas e escolas estão caindo aos pedaços.
A Oxfam fornece cobertores, alimentos e cuidados médicos, mas isso não basta. "As pessoas estão presas a uma situação na qual somos completamente impotentes", disse Addison.
"Elas não estão em condições de empunhar as armas ou de fazer avançar o processo de paz", acrescentou.
Os pais são impotentes porque este é um conflito travado em grande parte pelos próprios filhos menores, um conflito de crianças contra crianças. As vítimas e, ao mesmo tempo, os perpetradores de tais atrocidades são seus filhos e filhas, alguns com apenas 7 anos.
O Exército de Uganda reuniu comunidades de agricultores em acampamentos e cidades supostamente protegidos. Os poucos que se arriscaram a ficar em seus povoados mandam seus filhos para a cidade de madrugada a fim de evitar seqüestros por parte do LRA.
Conhecidos como os "habitantes da noite", estas crianças caminham silenciosamente por caminhos sujos. As mais afortunadas levam cobertores, alimentos e canecas e se aglomeram nos pavimentos de igrejas, hospitais e escolas.
Na noite em que o enviado do Guardian visitou Kitgum havia mais de mil pessoas deitadas em frente às portas fechadas do hospital geral da cidade.
No meio da escuridão, é fácil pisar sobre o corpo de uma pessoa adormecida, mas ninguém se queixa disso.
Desde que o Exército de Uganda cruzou a fronteira do Sudão e empurrou os rebeldes de volta ao território ugandense no ano passado, isso se tornou uma coisa rotineira e os "habitantes da noite" se multiplicaram nas últimas semanas, enquanto os seqüestros aumentam.
O LRA é chefiado por Joseph Kony, um místico e esquivo, que teria cerca de 40 anos e pretende governar Uganda de acordo com os Dez Mandamentos do Senhor. Suas crianças guerreiras são orientadas por comandantes adultos que foram outrora meninos guerreiros.
A Associação de Pais Preocupados com as Atrocidades de Kitgum, que reabilita ex-combatentes, estima que 14 mil crianças foram seqüestradas e levadas para a selva e 8 mil delas escaparam ou foram mortas, o que deixa ainda 6 mil crianças guerreiras no LRA.
Nas paredes do escritório da associação estão desenhos dos que escaparam. Um desses desenhos mostra uma mulher pendurada numa árvore por um dos calcanhares enquanto uma figura a espanca com um vara e outra acende um fogo sob a sua cabeça. Outro desenho mostra membros cortados e um homem caído e com a boca sangrando.
Richard Kinyera, diretor da associação, afirma que estes incidentes realmente aconteceram. E todos os dias chegam novos fugitivos com novas histórias.
Em outra organização não-governamental, chamada Associação das Mulheres Preocupadas de Kitgum, Wanok Constant, de 13 anos, conta que foi seqüestrado e obrigado a participar de um espancamento até a mote de outro menino que havia tentado escapar.
Patrick Ocaya, de 17 anos, vestido ainda com suas botas de combate, suas calças surradas e com um desengonçado casaco com capuz, que era seu uniforme no LRA, escapou cinco anos depois de ter sido levado à força de sua casa em Acholibur.
Nervoso e evitando o contato ocular, ele conta que chefiava grupos de meninos de 11 anos que assaltavam veículos. Foi tão bem-sucedido que o LRA o apelidou de "Ambush" (Emboscada) e o promoveu a cabo . Três vezes ferido, ele recebeu também ordens para matar sete pessoas com pauladas na nuca.
"Às vezes, uma pancada é suficiente", diz ele. "A gente precisa garantir que o crânio ficou esmagado e os miolos saltaram para fora." Ele fica surpreso quando lhe perguntamos se sentia pena daqueles que ajudava a seqüestrar. "Eu não tinha piedade. Estas eram as minhas ordens", diz ele.
Há casos documentados de recrutas obrigados a matar parentes, a marchar sobre miolos espalhados pelo chão e a cozinhar e comer carne humana.
O terror serve ao LRA, porque, uma vez implicados nestas ações, as crianças se consideram proscritas, fora-da-lei. "Ficam com muito medo de fugir porque foram levadas a cometer atrocidades", diz Pietro Galli, da associação caritativa italiana AVSI.
As crianças mais jovens são as que mais se sentem felizes em apertar o gatilho. "Para impressionar seus colegas, elas se tornam matadoras eficientes", diz Galli. O tenente Okot Santo Lapolo, comissário do distrito de Kitgum, não aceita nenhum acordo de compromisso: seus soldados e seus helicópteros de combate, recentemente adquiridos, esmagarão os rebeldes.
Incapaz de cultivar seus campos, pobre e faminta, a população do Norte de Uganda, só quer a paz e a segurança. Mas uma solução militar significa a morte de seus filhos. Para muitos, isso é um preço muito alto.
O coronel Sam Kiwanuka afirma que alguns pais fornecem alimentos aos rebeldes e ocultam informações ao Exército. Eles sabem que as declarações do Exército sobre as baixas causadas ao LRA equivalem a crianças mortas. As crianças inexperientes são as mais vulneráveis às metralhadoras dos helicópteros.
Uma anistia e outras aberturas de paz fracassaram: alguns guerrilheiros temem o castigo, outros fazem parte de uma geração que só conhece a guerra da selva. O padre José Gerner, membro de um grupo de líderes religiosos que promovem a paz, está quase desesperado. "A política do governo consiste em destruí-los, mas o LRA são mulheres e filhos", diz ele.

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